O gari e a independência
José nunca se preocupou em prosperar na vida e ter uma profissão lucrativa. É gari e não reclama do salário. Ficou sabendo que o seu ofício é antigo, se não lhe falhe a memória começou na Inglaterra onde foram contratados os primeiros homens para recolher o esterco espalhado pelas ruas pelos cavalos.
Raras vezes se aborrece com alguma coisa. Mas no dia Sete de Setembro deste ano, conseguiram tirar ele do sério. Nunca recusou serviço e já fez até limpeza de bocas de lobo.
Mas desta vez o encarregado escalou-o para um trabalho, no mínimo, esdrúxulo: faria parte do grupo que segue atrás dos cavalos do Exército para recolher o esterco.
O pelotão, imponente, bonito, coturnos lustrados, cavalos bem vermifugados e alimentados e o José ali, atrás, empurrando o carrinho de cor laranja, a pá e a vassoura, e uma multidão perfilada para ver a banda passar. Ele se sentiu o último dos moicanos.
Pior do que catar o esterco era ver o cavalo marchando e, de repente, erguendo o rabo, soltando um pum fedido e detonando aquele monte de esterco no asfalto.
E ele tendo que limpar rapidinho a sujeira porque logo atrás vinha gente, isso sob os olhares confusos, perplexos e estupefatos do público e ouvir, sem poder reclamar, algumas piadinhas de mau gosto do tipo: um...dois...três....esterco no balde; um...dois...três...o gari é freguês; um...dois...três...
Bem que sua mãe alertou-o para estudar, para ser dedicado na escola. Se tivesse ouvido os conselhos, hoje com toda certeza estaria em uma função melhor.
José nunca tinha visto o desfile sob a perspectiva da traseira de um cavalo do Exército. O pior é que em dado momento não conseguiu recolher as bolotas e ficou uma para trás e a estudante abre-ala que vinha logo em seguida pisou em cima e sujou a bota nova, comprada especialmente para aquele dia e já tratou de xingar: O tio, vê se limpa direito...
Percorrer as seis ou sete quadras atrás daqueles cavalos foi mais deprimente e cansativo do que trabalhar dois dias seguidos limpando a sujeira da praça na manhã após o carnaval de rua. Aquele percurso jamais chegava ao fim e o carrinho cada vez mais cheio, pesado e exalando aquele odor horrível. O cavalo joga para fora a proporção de feno que ele consome. Com certeza os animais estavam bem abastecidos naquele dia.
O gari odiou aquele serviço e não desejou aquele castigo para o pior dos seus inimigos. Quis reclamar para o encarregado, pedir as contas e mandar todos às favas. Mas de que adiantava uma revolta atrasada? O serviço já estava feito, o pior já tinha passado.
Mas aquela cena, aquela situação aviltante não lhe saia da cabeça. Sonhou com aqueles cavalos despejando esterco na sua frente e ele tendo que recolher, recolher, cheirar, se sujar...
Alguém, evidentemente, teria que fazer aquele serviço desagradável, mas não esperava que fosse ele o escolhido. Passou a detestar o desfile.
José ficou traumatizado, mas, eureca! No próximo ano vai sugerir fraldões para os cavalos e aí ele não corre o risco de ser obrigado a passar pelo mesmo vexame. Cavalo com faldas vai roubar a cena do desfile, se vai!