A criança não consegue compreender aquele alvoroço, a multidão se movimentando de um lado para outro, a mãe em busca de água, o pai desaparecendo em meio a outras pessoas, todas magras, muito magras, sinal da fome, da angústia, da incerteza. Começa a sentir um aperto no coração e chora, chora de desespero e com medo de ficar sozinha. A mãe reaparece para confortá-la.
A proteção para as noites frias é mínima, a cidade de lona não dorme. A criança chora de fome, de frio, têm os olhos aflitos, a saúde comprometida. Os homens discutem como proteger a área porque o clima é quase de guerra social. Aviões sobrevoam, os urubus batem asas céu afora, os inimigos têm carrões, andam bem vestidos, de chapéus bonitos, têm uma aparência de bem nutridos, permanecem à distância, na estrada, sob vigília. Ameaçam usar a força de for preciso. Haverá resistência. O sangue de inocentes, apaixonados, heróis de oportunidade, defensores de causas opostas, poderá se misturar ao vermelhão da terra.
Aquela criança sofre por se encontrar nessa condição, fragilizada, com tosse, cheia de vermes. Cidadãos humildes e trabalhadores, pobres, se perfilam em busca de esperança, de um sonho e o outro pelotão, mais abastado, quer garantir o que é seu, o patrimônio conquistado a duras penas, herdado dos avós. Aquela criança não tem culpa pela sucessão de fatos desencontrados e perigosos e não consegue se desvencilhar do medo.
Há a lei para ser respeitada e cumprida, mas letras frias não se comovem diante da aflição, da injustiça social, das coisas que o coração sente. Elas servem para proteger o homem provido e não o desprovido.
Os homens do governo intervém, mas a situação é tensa, complicada. Ambos os lados estão bem articulados e hesitam em ceder. Aquela criança ouviu algum adulto falando sobre balas perdidas, sobre pessoas que morreram sem motivo algum, sem terem feito mal a ninguém. A bala perdida deve ser o bicho papão, associa. Ela tem medo dos bichos do mato e há fantasmas e animais rondando o acampamento, inclusive urubus.
A mãe ora silenciosamente e o filho acompanha, também sem entender, aquele momento de indulgência. O pai retorna com uma arma na cintura, com um facão nas mãos. Traz lenha para aquecer a família e toma o filho, por alguns minutos, no colo, como se estivesse se despedindo.
Aquela criança não compreende, mas sente algo estranho no ar, algo nebuloso.
Do outro lado, na estrada, não há crianças, não há mulheres. Apenas homens, fortes e bem dispostos, observando ferozmente a movimentação, prontos para reagirem. A polícia nada pode fazer. Todo o efetivo da jurisdição é menor do que o número de pessoas antagônicas.
As lanternas, à noite, formam o balé de Dante, impondo pavor, tensão. Aquela criança nunca viu desenhos, seus brinquedos não passam de carrinhos de plástico e rodas quebradas. Aquele ambiente é uma sucessão de erros, intolerâncias.
A única coisa verdadeira e valiosa que lhe conforta é o amor da própria mãe, mas não sabe até quando. Aquela criança se entristece: falta tanto amor, compreensão e renúncia. Ela não se importa em dividir seus poucos brinquedos velhos com outros da sua idade porque ainda não foi contaminada pelo vírus do egoísmo. Espera, um dia, ir à escola para conjugar melhor o verbo ter, o possuir, o ceder, assim como o modo imperativo negativo. Talvez entenda, então, a distância entre o dizer e o fazer.